The Last of Us e o que sobrou de nós…

Eu gostaria e ainda tenho a intenção de cursar psicologia. Se há algo que me atrai é a compreensão dos estados da nossa mente e a forma como ela se comporta em determinadas situações. Olhando para esse ponto queria falar um pouquinho sobre jogos que exploram problemas mentais e o fazem de forma respeitosa e correta. Fica o aviso, tentarei me conter bastante para não estragar as histórias de cada jogo, mas existe a real probabilidade de eu ter que entrar em tópicos mais profundos do plot de cada história/personagem, então esse texto pode ser pesado em spoilers.

The Last of Us Part 1 e Part 2

Ser humano é tudo que somos. Cada individuo é um ser de complexidade única e por vezes incompreensível. O conflito que sentimos quando olhamos para determinados personagens é o mesmo que sentimos quando olhamos para nós mesmos e para as pessoas próximas a nós; cada um tem um entendimento sobre o que é certo e errado, e o que The Last of Us procura nos mostrar que também podemos simpatizar com os tons de cinza que há entre essas duas medidas.

Somos seres em constante construção, erguida sobre pilares de experiências, frustrações, conquistas e memórias; somos fortes e, ao mesmo tempo, vulneráveis além de fatores extras que não podemos controlar, ver ou prever. Não somos “bons” ou “maus”, somos um finito  trabalho em andamento.

A partir desta premissa, The Last of Us nos apresenta dois personagens complexos que navegam nessa procura de identidade. Por conhecemos uma breve história de seus passados e executarmos todas as ações desses personagens vamos criando e estreitando laços com eles.

Joel: Perda e Reparação

Joel

Quando você encontra adultos que internalizam seus sentimentos, podemos muitas vezes, olhar para sua infância e encontrar ali situações que podem ter acionado esse tipo de comportamento, em alguns casos podemos dizer que eles foram parentificados muito cedo. O que significa isso? Significa que em vez da criança ter adultos para cuidar deles (física ou emocionalmente), eles tiveram que aprender a ser os pais/mães de si mesmos e Joel exibe sinais claros disso.

Joel basicamente criou seu irmão mais novo. Nunca nos é explicado os paradeiros de seus pais e mães, o que torna quase evidente que faltou o cuidado de algum adulto confiável ao seu redor, portanto, o instinto de Joel para sobreviver começou muito jovem. Eu apostaria ainda mais no fato de Joel ter desenvolvido um estilo de apego “evitativo” durante esse período. O apego descreve como uma pessoa se relaciona com os outros, especificamente o quanto ela se sente capaz de confiar no próximo.

A pessoa evitativa sente: “Ninguém vai cuidar de mim, então eu tenho que cuidar de mim (e das pessoas que amo)”. Ele teria, portanto, um enorme senso de responsabilidade para com aqueles que amava, acreditando que ninguém mais será capaz de cuidar deles, exceto ele. É provavelmente por isso que, mais tarde, Joel estava disposto a fazer qualquer coisa que pudesse para sobreviver, incluindo coisas das quais ele discordava moralmente – com a intenção de que isso mantivesse ele e seus entes queridos seguros. A propósito, isso também contribui para muitos dos traços mais admiráveis ​​de Joel – sua lealdade, sua vontade de colocar os outros antes de si mesmo e sua persistência em face da adversidade.

Entretanto, a morte de uma criança é inimaginavelmente traumática para qualquer mãe ou pai. Eu nem consigo começar a compreender como seria essa perda. Para realmente entender o que aconteceu nos próximos vinte anos, precisamos olhar para este evento devastador no contexto. Na primeira hora de jogo, Joel fica sem filha e sem identidade. Tudo o que ele era e construiu teria girado em torno de Sarah. Protegê-la era seu único propósito, e perdê-la foi literalmente insuportável.

O instinto de sobrevivência teria assumido inicialmente – a resiliência natural é o principal componente das reações de luto e trauma. Impulsionado pela adrenalina, incapaz de processar psicologicamente o que havia acontecido. Só depois que as coisas se acalmassem um pouco é que ele seria capaz de refletir verdadeiramente sobre o que restou. Seria compreensível que Joel tivesse considerado acabar com a própria vida, mas para um homem que coloca sobre si mesmo a responsabilidade inabalável pelo destino dos outros, seria como se ele tivesse falhado da maneira mais absoluta com seu instinto primordial. Em exemplos reais de situações semelhantes, as pessoas costumam afirmar que sentem que merecem morrer (https://www.psicologoeterapia.com.br/depressao/o-processo-de-luto-pode-gerar-depressao/). Seu instinto, portanto, de viver, embora seu ente querido não vivesse, causa-lhes uma profunda angústia. Esse sentimento é conhecido como culpa do sobrevivente e é algo que atormentaria Joel por duas décadas.

E então conhecemos Ellie. Ellie deve ter a mesma idade de Sarah quando ela faleceu. É visível o alarme disparando imediatamente na cabeça de Joel e ele é incrivelmente lento para criar qualquer forma de carinho por ela – muitas vezes sendo até rude. Isso demonstra que inconscientemente ele está tentando distanciá-la da imagem de Sarah e evitar as dolorosas lembranças de sua perda. Ellie não sabe disso, mas ela é excepcionalmente resistente as abordagens e comportamentos de Joel, e por ver nele alguém responsável e que irá levar ela com segurança até o objetivo ela continua na jornada com ele.

Mas a relação paternal de Joel é natural dele, e esse contraste inicial demonstra o seu terror em ter que sentir qualquer empatia por Ellie. Entretanto, apesar de seus melhores esforços ele desenvolve uma afeição platônica por Ellie. Ele elogia o desempenho dela e até se permite se sentir mais relaxado e tranquilo perto dela. É possível ver a sua guarda baixando, de forma tão lenta e sutil que nem ele percebe. A resposta a isso é demonstrada muito mais rapidamente quando ocorrem momentos que o lembram do que ele tem a perder.

E uma das poucas respostas instintivas que surgem quando nos sentimos mais vulneráveis, mais ameaçados é sentirmos raiva. Isso não é algo que Joel consiga controlar, ou mesmo perceber que está acontecendo – é o seu mecanismo de defesa, uma reação instintiva vinda de dentro e projetada para mantê-lo seguro. É algo com o qual podemos nos identificar (acho!). Esse processo de formação reativa no qual ele age de forma oposta ao que realmente está sentindo, a fim de evitar o confronto com esses sentimentos. Quando Joel discute com Ellie, ele está usando a raiva para neutralizar seus sentimentos de alívio e culpa. Quanto mais essas situações ocorrem, mais defensivo Joel se torna (mostrando o quanto seus sentimentos cresceram). Sua luta e conflito não é mais com Ellie e o sentimento de perder ela, mas com ele mesmo, seus próprios medos, desejos e a dissonância cognitiva que emerge no seu interior.

Nesse constructo sombrio e moralmente questionável, força quem está jogando a questionar sobre o caráter humano. E por estar no controle do personagem, te força a ser também a parte ruim da história, mas também traz o sentir-se bem por ter feito isso.

Ellie: Luto e Aceitação

Ellie

Cinco anos após os eventos do primeiro jogo, Ellie é uma personagem fria, um tanto distante e muitas vezes impiedosa. Motivada por vingança, a garota que conhecíamos de “The Last of Us Part 1” se transformou em algo mais obscuro. Seu otimismo está atenuado e seu humor silenciado – seu livro de trocadilhos que antes era cheio de piadas e trocadilhos, deu lugar para um diário. “The Last of Us Part II” narra o caminho de Ellie desde a ruptura de sua alma ao navegar por lugares sombiramente conflituosos em busca de alguma forma de redenção e reconciliação.

The Last of Us Part 2 não está afim de facilitar a vida de seus protagonistas tão pouco de quem está conduzindo a história e o trauma que assombra a jornada de Ellie e domina suas ações durante o jogo acontece nas horas iniciais de The Last of Us Part 2 e são seguidas por sintomas de hiperexcitação, que começam a fazer parte do dia-a-dia dela. Ela assusta-se facilmente, dorme mal e reage com irritabilidade a qualquer provocação, é a manifestação de um estado de alerta e estresse constante. Mas esse estado não fica claro imediatamente para o jogador e nem Ellie deixa isso transparecer. Logo após o evento que catalisou seu desejo por reparação ela deixa a cidade de Jackson para imediatamente se aventurar num território perigoso e cheio de ameaças. Portanto, estar nesse estado de alerta constante era bastante normal dadas as circunstâncias. Então, para nós – jogadores e espectadores – o trauma de Ellie não é flagrantemente óbvio de imediato.

Como nasce o trauma? O trauma tem origem no sentimento de impotência que a vítima tem ao sentir-se incapaz de agir ou fazer qualquer coisa para impedir que os eventos horríveis que estão acontecendo se desenrolem. Esse sentimento de impotência perdura por muito tempo após passado o momento traumático; é como se aderisse ao sobrevivente um odor constante de perigo de morte. Num movimento desesperado para se livrar da sensação de impotência, muitos sobreviventes recorrem a encenações. A reconstituição é a revivência compulsiva de uma situação reminiscente do momento traumático, com o objetivo de dominar os sentimentos que oprimiram a pessoa durante o trauma, ao contrário dos videogames, que nos permitem reiniciar a experiência sempre que há uma falha, seja quando você morre ou quando as coisas não saem do jeito que você queria, sempre tem um autosave ou checkpoint no caminho, o passado de nossas vidas, entretanto, não podem ser mudado e reviver uma situação semelhante ao momento do trauma dificilmente vai desfazer o trauma pelo qual a pessoa passou. E isso fica claro na Ellie. Suas expressões faciais durante e após a tentativa de reconstituição não são sentimentos de triunfo ou fortalecimento; mas de raiva e imediatamente seguido por choque e até enjoo em decorrência de suas próprias ações. Ela está claramente abalada.

Existe um segmento no jogo que me é muito próximo e realista. Eu vi minha própria experiência sendo refletida de volta com tanta fidelidade que me assombrou, ainda hoje tenho dificuldades em voltar a jogar e até durante o jogo eu levei algum tempo para retomar a jogatina. Chegando ao ponto de aquele instante se tornar um momento de percepção, no qual consegui apontar as qualidades que tornam um flashback traumático aterrorizante.

Tentando evitar o máximo de spoilers, o gatilho inicial se da com uma pá batendo no chão, esse ato funciona como uma corda amarrada na cintura, puxando a pessoa com tanta intensidade que traz a pessoa para a origem do trauma. Para pessoas com transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), uma determinada imagem geralmente representa toda a experiência traumática. O fato da imagem ou da sensação aparecer aparentemente do nada e sem um contexto dá à memória traumática uma intenção de realidade aumentada e tudo isso acontece em um piscar de olhos, num flash de imagens oriundas de pesadelos. A cena em si não é demorada, o que a torna ainda mais precisa.

Após o gatilho e o rápido lampejo de horror, Ellie está de volta ao celeiro, mas toda a cena ganhou um outro ambiente, uma iluminação mais escura e sinistra, o vento parece uivar de forma  ameaçadora e o mundo fora do celeiro emite a luz avermelhada que sinaliza que uma tempestade quase apocalíptica se aproxima. A sensação de relaxamento é imediatamente substituída pela sensação de uma ameaça inexplicável e crescente.

Quando o cordeiro sai do celeiro, o vento fecha as portas do celeiro com um estrondo. Ellie é novamente transportada para outro lugar, primeiro para uma escuridão completa, preenchida apenas por sua respiração em pânico, depois para a escada que leva ao porão do chalé aonde tudo começou. Ellie não consegue abrir a porta para o horror que ela sabe que está acontecendo lá dentro. Ela tenta desesperadamente abrir a porta, mas a porta está trancada. Encaro essa encenação da porta trancada como uma metáfora para as memórias traumáticas que ainda estão escondidas, como algo na qual a pessoa ainda não está preparada para olhar e trabalhar internamente. Nesse instante vem um estado de ruptura, ela consegue ouvir que há problemas graves atrás da porta, nesse momento parte dela está morrendo de vontade de abrir a porta e fazer algo para impedir que aquele horror se repita, enquanto outra parte está aliviada exatamente pelo fato de a porta está trancada e você não precisa testemunhar o horror mais uma vez. Não sei se essa foi a intenção de Neil Druckmann e sua equipe que esta cena fosse entendida neste sentido metafórico, mas para mim, é impossível não colocar minha própria experiência na leitura desta cena.

O terror acaba, Ellie está de volta ao celeiro. Alguém chora copiosamente, Dina procura tranquilizar Ellie dizendo: “Você está em casa, você está em casa”, Ellie repetidamente toca tudo que está a sua volta como uma forma de aterrar seu corpo em objetos físicos como forma de se trazer de volta à realidade. Eu estive inúmeras vezes nessa mesma situação e posso garantir que o retrato é extremamente preciso. Com tempo, muito cuidado e carinho, recupera-se o controle, mas a exaustão e o sentimento de derrota é quase uma nova forma de matéria, algo passível de se sentir com todos os sentidos humanos, e Ellie apresenta exatamente esse sentimento.

Esse flashback serve para destruir a ilusão em quem está jogando de que está tudo bem na vida de Ellie. Demonstra que ela não se sente segura neste lugar que ela racionalmente sabe que é seguro, porque qualquer estímulo inócuo pode desencadear outro flashback terrível e culminando em novos ataques de pânico a qualquer momento. Neste ponto de sua vida, Ellie não se sente segura na fazenda e ela não se sentiria segura em qualquer lugar no mundo justamente por ela não se sentir segura aonde reside a maior prova de sua existência, dentro do seu próprio corpo.

Essa fantasia de vingança é uma forma de desejo pela catarse e Ellie está convencida de que matar o seu algoz é a única maneira de fazer todo o seu sofrimento ter significado e de conseguir se reconciliar com seu trauma. Outro fator que leva Ellie a buscar a vingança tem a ver com o quão desconectada ela se sente de si mesma – de seu próprio corpo e de quem ela costumava ser antes de tudo.

Além de todas as atuais lutas internas, Ellie também tem que lidar com seu complexo caso de culpa de sobrevivente. Ellie se sente culpada por ser imune a doença enquanto muitos de seus entes queridos morreram por causa dela. Ela se sente pessoalmente responsável pela falta de cura da humanidade – se essa crença é justificada ou não, não importa, porque faz com que Ellie sofra de qualquer maneira. A outra camada de culpa do sobrevivente tem a ver com os incontáveis ​​”e se” em torno do relacionamento de Ellie com Joel; e se ela não tivesse sido tão dura após descobrir a verdade, e se ela tivesse tentado dar a ele outra chance mais cedo, e se ela tivesse sido mais rápida e atirado em Abby antes que os outros levassem sua arma, e se ela estivesse patrulhando em vez de se divertir com Dina. Esse tipo de pensamento assombra todos os sobreviventes que testemunharam uma morte e o sofrimento de outras pessoas. Ser poupado, sabendo que outros tiveram um destino pior, cria um pesado fardo na consciência.

Há ainda outro fator que contribui para os intensos sentimentos de alienação de um sobrevivente. Tal qual como a desconhecida juventude e criação de Joel, é durante uma experiência horrível, nosso primeiro instinto é buscar segurança e abrigo. Quando ninguém está ao seu lado, e você é deixado sozinho para enfrentar o que provavelmente é o pior momento de sua vida, você se sente “abandonado, totalmente sozinho, sem qualquer cuidado ou proteção de algo que sustente a sua vida”. O que nos faz retornar ao sentimento de parentificação, o que indica que agora você está por sua conta própria e reparar essa confiança que se quebrou tanto em você, quanto nas pessoas que convivem com você e até mesmo se reconectar com a fé e a moralidade que te sustentavam é uma parte difícil. Vide os comentários no caso do Joel.

Curar traumas não é uma tarefa simples ou se quer pode ser considerada fácil. É um processo iterativo, tal qual como jogar videogame, você encontra respostas e progride, às vezes é preciso voltar e refazer alguma etapa porque ela não foi concluída completante. O processo de cura também requer que a pessoa assuma a responsabilidade, não apenas por sua própria recuperação, mas também pelos danos que causou a outras pessoas enquanto sofriam com seus sintomas de trauma. Com tempo, e depois de muita reflexão sobre o trauma, tanto a Ellie quanto quem se aventurar nessa descoberta, descobrirá que recontar a história não provocará emoções e sensações tão fortes. Suas experiências traumáticas irão lentamente se tornar integradas à história de sua vida, tornando-se parte de sua narrativa, e ao invés de flashes de horror que antes te deixavam com medo ou com exaustão, ficará a continuidade da construção do ser humano, mostrará que as portas estavam abertas e a saída é apenas um passo além do lugar que se estava.