SOMA — O que significa existir?
Tempos atrás, num post a muito esquecido, eu havia comentado sobre NieR: Automata, um jogo que te questiona constantemente o que significa ser humano, usando para isso personagens humanoides, eis que no início deste ano (2022) outro jogo utilizando uma roupagem semelhante te faz a mesma pergunta, contudo te questionando sobre a tua existência de forma muito mais assustadora e muito menos otimista. Desenvolvido pela Frictional Games, SOMA (2015) explora o medo da existência humana, submetendo tanto o personagem quanto o/a/e jogador/a/e a questionar sua identidade, tanto no jogo quanto fora dele.
SOMA nos coloca na visão de Simon Jerrett, um funcionário de uma livraria em Toronto que após sofrer um trauma cerebral, vai para uma clínica pensando em fazer uma consulta rotineira para verificar o estado das suas capacidades cerebrais, com isso em mente, ele se senta em uma cadeira e um computador passa a analisar as suas memórias. Até que algo acontece e Simon se vê em uma estação abandonada, no fundo do oceano a quase cem anos no futuro. Auxiliado por Catherine, uma IA copiada de um dos cientistas da instalação, Simon descobre a verdade sobre o motivo dele de repente ter despertado lá: o mundo essencialmente acabou. Toda a vida na superfície da Terra foi dizimada por um cometa, transformando tudo menos os oceanos em um terreno baldio tóxico, e a IA guardiã, a WAU, aderiu cegamente à sua programação primária de proteger a vida por qualquer meio necessário. A WAU matou a maioria dos humanos restantes e posteriormente reanimando-os como ciborgues enviando cópias da IA deles em robôs. Isso inicialmente inspirou Catherine, a humana original, a criar o ARK: uma cápsula de realidade artificial que preserva a vida humana por milênios além da vida humana, armazenando cópias da equipe em seu mundo virtual. Simon e Catherine fazem um último esforço para salvar a humanidade: carregar as cópias de IA de todos na PATHOS-II (nome do laboratório subaquático) na ARK e lançá-la ao espaço.
Em sua essência, SOMA trata sobre a ética da Transferência Mental ou Mind uploading, também conhecido como emulação total do cérebro (whole brain emulation – WBE). O WBE é, essencialmente, o processo hipotético de escanear um cérebro, criar uma emulação (imitação) do estado mental e depois copiá-lo em um computador. O computador então executa uma simulação de todas as informações do cérebro para recriar o original; em outras palavras, uma cópia digital sua agora vive em uma máquina ou na Internet.
No movimento transumanista, a transferência mental parece ser o próximo passo lógico na evolução humana: carregamos uma simulação de nós mesmos em um computador, livre das restrições de nossas necessidades biológicas, e desbloqueamos a possibilidade de enganar a própria morte. A palavra-chave aqui, porém, é copiar; com nossas atuais capacidades e compreensão da tecnologia do computador, não podemos simplesmente transferir o cérebro de um corpo humano para o computador, deixando para trás um recipiente vazio e retomando de onde você parou. Teríamos uma cópia física e uma cópia digital de nós mesmos, e SOMA apresenta os desafios éticos desse cenário em um evento pós-apocalíptico onde as pessoas fariam qualquer coisa para sobreviver.
No jogo, quando um cérebro é escaneado (copiado) em uma forma de vida de computador ou máquina, a nova cópia acredita e age como se fosse a versão original, retendo as memórias do original quando foi escaneado pela primeira vez e com esse pensamento, SOMA nos convida a refletir sobre o que nos torna humanos. Então, perguntas começaram a surgir na minha cabeça: o que acontece quando você descobre que seu corpo foi quase destruído, então você copia sua personalidade para uma nova? O que acontece com o você que acorda no novo corpo? O que acontece com o que está no corpo antigo? Quem é você? Como você lida com o fato de existirem dois de vocês, vivendo vidas separadas? Essas outras IAs ainda são humanos? Eles são os originais simplesmente transferidos para novos corpos, ou imitações ocas? É ético prejudicá-los ou destruí-los se isso garante a minha própria sobrevivência? O jogo nunca responde a essas perguntas, deixando o jogador experimente e reflita sobre isso por si mesmo tornando os dilemas muito mais desconfortáveis e assustadores.
O ser humano é o único ser cujo “ser” é uma questão. Até onde sabemos, nós, humanos, somos as únicas criaturas que conseguem examinar e questionar nossa própria natureza, de perguntar como é e o porquê de sermos nós. Desta forma, SOMA nos apresenta uma moralidade um tanto obscura, pois ela não tenta te julgar pelas decisões ou ações que você toma. Ele simplesmente pede que você aja, de uma forma ou de outra, e então considere e se questione sobre as ramificações destes eventos.
Enquanto jogava, não pude deixar de sentir que as questões levantadas sobre transferência mental nunca levavam a uma resposta clara. É melhor morrer naturalmente ou tentar prolongar artificialmente sua vida? Se você morresse e acordasse como uma cópia digital de si mesmo em um mundo programado, você poderia realmente ser feliz, sabendo que o mundo ao seu redor não é realmente real? Os sacrifícios que você teve que fazer enquanto ainda estava vivo valeram a pena? E se o você anterior ainda não morreu? Qual o sentimento de observar o seu eu anterior morrendo?
SOMA é uma enxurrada de perguntas desconfortáveis que acabam por ser muito mais eficazes em te atormentar do que o simples ato de esquivar de seres assustadores em corredores mal iluminados. Os monstros, por mais assustadores que sejam, não podem prejudicá-lo fora do mundo do jogo. Talvez eles assombrem seus sonhos por alguns dias, mas esse medo te deixará desconfortável por algum tempo. No entanto, saber o que significa ser você? Sobre o que você sentiria se uma cópia de sua personalidade estivesse por aí em algum lugar, vivendo sua vida através de outro corpo? Como você se sentiria se descobrisse que VOCÊ é a cópia?
Para mim isso é assustador, pois me fez considerar tudo dentro da minha realidade. Abalando minha presença no mundo real. Me fazendo questionar a minha própria vida e meus próprios pensamentos sobre assuntos que nunca considerei ou senti necessidade de questionar. Eu sou eu? SOMA se propõe a abalar a certeza de quem joga sobre o eu e o que significa existir, e suas conclusões ambíguas, sem muitas respostas, deixarão o jogador com muitas outras perguntas a serem consideradas à medida que os créditos rolam.
No fim, SOMA entende que contar histórias interativas não significa necessariamente que cada escolha que você faça como jogador precisa impactar o resultado da própria história: em vez disso, ele encoraja você a explorar por esse mundo com suas próprias mãos e com isso chegar a suas próprias conclusões. Acho jogos que pedem para você fazer isso são os mais interessantes porque em que outro meio uma história como essa poderia ser contada? Jogos colocam você no epicentro de uma situação, e cabe a pessoa segurando o controle tomar essas decisões. Você não está apenas sentindo empatia por um protagonista, mas você se torna o protagonista de maneira que romances, filmes, teatros e outras mídias não conseguem — e penso que os estúdios deveriam tirar mais proveito disso. No fim do dia, coisas como gráficos, frames e mecânicas, num primeiro momento, são secundários para mim — é ÓBVIO jogar um jogo com belos gráficos e com taxas de quadros que deixam o jogo mais suave é ótimo, não sejamos hipócritas, mas nada permanece sem uma boa história.
Embora a Frictional Games tivesse a fama de aterrorizar com seus monstros e a não possibilidade de usar armas para se defender, eles trouxeram algo muito mais assustador, um tipo diferente de medo, um nascido do questionar seu lugar na existência, ou o que significa existir. Um nascido de descobrir que você não tem nenhuma resposta para isso. SOMA é um mergulho filosófico profundo no mundo do existencialismo e do transumanismo e merece ser totalmente experimentado.
“Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando nele se entra novamente, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou.” Heráclito.
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